Uma das características fundamentais da prática esportiva, em particular do futebol, é a possibilidade de todos entrarem em campo para mostrar suas habilidades (ou falta delas), todos, do mais perna-de-pau ao craque goleador tem sua posição e para auxiliar aqueles que não foram dotados pela natureza de capacidade futebolística há na regra do jogo o famoso “café com leite”.
Explicando melhor o termo que não tem qualquer referência a ingestão da bebida quente preferência nacional, o “café com leite” como qualquer menino boleiro poderá confirmar trata da inclusão em jogo daquele amigo que não possui ainda habilidade em campo. No meio dos meninos e meninas que iniciam na prática futebolística, em regra é aquele amigo que começou a aprender, ainda não domina os fundamentos, é em geral o mais novo da turma, mas por uma questão de fazer contar a presença em campo os jogadores mais experientes permitem que ele ali esteja para um dia poder jogar em pé de igualdade, enquanto este dia não chega o “café com leite”precisa deste auxílio.
Digno de nota é que a condição de “café com leite” é temporária, espera-se que o jogador nesta condição apure suas habilidades de logo, da mesma maneira aquele que recebe este título faz de tudo para o mais breve ser aceito em meio aos mais experientes e deixar de ser considerado um jogador que precisa de mais cuidados porque não se garante em campo. É dizer o auxílio é temporário até que o atleta possa se manter por suas habilidades, caso isto não ocorra é bem provável que os demais não tolerem esta situação por muito tempo.
Pois bem, mas o que isto tem a ver com o título de nosso artigo semanal? responde o articulista, tudo. Vivemos atualmente na Pátria dos auxílios, seja para combustível, comida, roupas, gás e tantos outros, ideias que nasceram em grande parte da necessidade de se fazer frente a necessidade de igualar situações desiguais e que se acentuaram no período mais agudo da pandemia em vista do desemprego e da falta de um horizonte mais promissor.
De um modo em geral o desafio para o governo, qualquer governo, não é tanto garantir a igualdade per se, mas proporcionar a todos acesso a oportunidades, neste sentido planos e projetos são criados para tentar nivelar os pratos da balança, auxiliar aqueles que necessitam a alcançar o nível mínimo desejado para que possam se manter em campo.
Para que isto seja alcançado a opção adotada pelos governos mundo afora é em geral o de aumento de renda por intermédio do aporte financeiro, noutros termos, a distribuição de dinheiro em escala. Vejamos o exemplo do ocorrido na Finlândia, país nórdico que adotou o sistema da Renda Básica Universal (RBU)
Implementado em 2017 a RBU Finlandesa começou pagando cerca de 500 Euros por mês para indivíduos de uma amostra aleatória de 2 mil desempregados, com idades que variavam de 25 a 60 anos, os beneficiários não tinham a obrigação de encontrar emprego durante 2 anos da ajuda, e continuariam recebendo auxílio mesmo que encontrassem trabalho. O governo com isso esperava diminuir a taxa de desemprego ao mesmo tempo em que empurraria para baixo os gastos com seguridade social.
A expectativa era a de que a renda básica e incondicional incentivasse os beneficiários a aceitar um emprego formal, uma vez estipulado um valor que permitia a sobrevivência, as pessoas desejariam suplementá-lo com trabalho adicional.
Apesar dos avanços trazidos pela implementação da RBU um efeito colateral nocivo foi observado, a renda básica universal minou o incentivo ao trabalho, houve no espectro do programa uma acomodação de beneficiários “satisfeitos” em se manter somente com o valor recebido pelo governo, além do aumento do trabalho eventual de curto prazo, em vista da necessidade dos cidadãos se recadastrarem para recebimento do benefício cada vez que o contrato de curto prazo expirasse.
Uma das críticas mais encontradas a este sistema de auxílio foi exatamente o de que redes de segurança não deveriam conduzir a uma vida de dependência, e a renda básica universal na Finlândia acabou por acarretar exatamente isso.
Desnecessário fazer a comparação de que não somos ainda um país como a Finlândia e que os auxílios e benefícios existentes e distribuídos pelo governo em níveis municipal, estadual e federal visam, dentre outros, tirar aqueles que estão em extrema pobreza desta condição. Inobstante, observamos exatamente este ciclo de dependência sendo criado, de um lado o beneficiário “acomodado” a receber o auxílio, de outro o Estado injetando mais dinheiro para alcançar o maior número de pessoas, algumas delas fora do âmbito inicial do programa, mantendo com elas uma relação de dependência também utilizada para fins nada republicanos e até eleitorais.
Em minha experiência amazônica recente, na capital e interior, observei em primeira mão estes efeitos, nosso povo de municípios outrora conhecidos pela produção de gêneros agrícolas como cupuaçu, guaraná ou pólos pesqueiros como tucunaré e tambaqui ou a produção da própria farinha, iguaria gastronômica sem igual em nossas pairagens, vivendo única e exclusivamente de auxílios, ao passar nas feiras livres observei que os gêneros alimentícios que deveriam estar sendo produzidos aqui chegam em nossas mesas vindos de outros Estados, até o próprio cheiro-verde é hoje importado em grande parte do Ceará.
Questões de ideologia política à parte mas precisamos mudar radicalmente o jeito de pensar e implementar esses benefícios, uma renda básica está custando muito caro ao nosso desenvolvimento, precisamos treinar pessoas para se qualificarem para novos empregos, o Estado deve estar presente para quem não pode comprovadamente se sustentar, não para quem pode.
Injetar “mais dinheiro” nestes programas não vai resolver o gap existente em nosso sistema de bem-estar social, precisamos reinventá-lo, um dos maiores problemas do modelo atual é ser fundamentalmente paternalista e privar os beneficiários de seus direitos ou invés de lhes proporcionar autonomia, além de ser financeira e organizacionalmente inviável de se manter.
O sistema precisa de reorganização criativa que dê maior protagonismo ao individuo, às comunidades, maior delegação de responsabilidade às organizações locais, e os usuários finais precisam estar mais engajados no desenvolvimento e oferta de oportunidades, isto resultará em maior envolvimento em soluções mais eficazes e pontuais para problemas locais, bem como a maior participação daqueles que hoje estão distanciados das soluções necessárias aos problemas existentes.
Não se ganha Copa do Mundo com jogadores “café com leite”, projetos faraônicos, como estádios são notados imediatamente, contudo, investir em pessoas requer tempo, é difícil mostrar o avanço obtido e os resultados só aparecem anos, até décadas mais tarde, contudo manter a acomodação e o ciclo de dependência sem incluir as várias tribos na solução dos problemas custa exponencialmente muito mais, compromete-se o presente e as futuras gerações. Passou da hora de fazermos uma escolha inteligente.
Anderson F. Fonseca. Professor de Direito Constitucional. Advogado. Especialista em Comércio Exterior e ZFM. IG:@anderson.f.fonseca